PARA QUEM A FEIRA DO LIVRO É PALCO



João Manoel Maldaner Carneiro *




Aclamada como a maior feira do livro ao ar livre das Américas, a Feira do Livro de Porto Alegre chegou à sua 56ª edição. Pujantemente, graças a um trabalho de preparo que inicia antes mesmo de uma edição terminar e ao trabalho exaustivo durante 18 dias, como foi neste ano. Por sorte, conta com uma equipe que não se queixa de trabalhar, e trabalhar cada vez mais.

Mas a Feira do Livro erra.

Erra por dois motivos: porque, como é chavão dizer, é construída por humanos e, outro chavão, porque não é possível agradar a todos. (Se não crescesse, seria um presságio do seu fim. Ao crescer, perde sua característica de paroquial. Se o setor de alimentação ganha destaque, espanto. Se a alimentação fica em plano secundário, lamentos. Se os eventos culturais, todos gratuitos, ampliam-se, teme-se pelo lado comercial e, afinal, é uma Feira de venda de livros. Se há preocupação com vendas, é o domínio do capital. Já se leu até sugestão de que deveria acontecer em espaço privado e fechado, como em outras capitais, onde se cobram ingressos e se respira ar condicionado.)

Acontece que a Feira segue e é um espaço de resistência do escritor, do livreiro, do editor, do distribuidor e do leitor.

A diretoria da Câmara Rio-Grandense do Livro, entidade que presido juntamente com companheiros aguerridos não remunerados e que, entre outras atividades de fomento à leitura, realizadas durante todo o ano, organiza a Feira do Livro, se ressente do pouco tempo que tem para refletir sobre seus fazeres. Em um dia destes de tempo escasso, topei com uma chave de compreensão da Feira do Livro.  Foi durante um almoço que só ela sabe fazer, que a senhora Waskievicz declarou: no ano que vem, tiro minhas férias no período da Feira para poder participar de todas as atividades. Declaração feita, discorreu sobre as palestras, oficinas e demais eventos de que tinha participado nos seus fins de semana de folga. 

Como ela, milhares de pessoas passam anonimamente, delicadamente, pela Feira. Pessoas não movidas por outros interesses que não o contato com o livro e seu livreiro, com o livro e seu escritor, com o livro e outros leitores, que vão até lá ver com seus próprios olhos e escolher o que querem para si. Que guardam este grau de independência e de julgamento que, às vezes, penso, os simples conseguem ter sem precisar refletir. E, além deles, alguns autores que escrevem sobre estas pessoas, como Autran Dourado, que é quem me veio imediatamente à cabeça. Ou Anibal Machado ou Simões Lopes Neto e tantos outros, a lista seguiria longa. Enfim, escritores que captaram a forma de ser, doce e honesta, das pessoas simples. Das pessoas que trabalham o dia todo e na sua folga correm à Feira. Sempre que a Feira não dedica atenção máxima a este seu frequentador, que quer tirar proveito da Feira ao encontrar nela um livro que o encante, a Feira erra.  É nele que este evento encontra sua razão de ser. 

A Feira encontra sua razão de ser na moça, no menino, na senhora, no idoso, que penetram anônimos, esgueirando-se entre as bancas na busca de um livro que "caiba no seu bolso" e o transporte deste para outros mundos. De princesas ou de assombros, de monstros ou de anjos, de vampiros ou de viajantes, mundos com personagens com quem se identificam, com personagens que nada têm a ver a não ser com desejos secretos. Não cabe a ninguém dizer que esta ou aquela escolha é a mais válida; isso seria censurar a razão de ser da Feira. 

A Feira do Livro tem, com seu público, a responsabilidade de apresentar o melhor do livro e da leitura, por meio dos melhores representantes da literatura, das mais diversas origens e segmentos, da literatura oral, da academia, escritores de primeiras obras, de obras-primas também, manifestações artísticas, a face cultural de nossa cidade. É a autonomia do leitor que fará as escolhas.

Qualquer porta pela qual nossos anônimos leitores entram na literatura e entabulam seus primeiros encontros com as letras é, para nós, sagrada. Não apenas porque, na Feira do Livro, pasmem, vendemos livros, mas porque temos a sorte de comercializarmos um bem que tem efeitos imensuráveis na alma.  


A Feira continuará existindo para esses frequentadores e é a eles que dedicamos cada uma das edições da Feira do Livro de Porto Alegre, passadas e futuras, a eles e a seus iguais, dedicamos toda nossa energia.


Presidente da Câmara Rio-grandense do Livro.




O NÃO ÀS URNAS


Publicado em Zero Hora de 06 de agosto de 2014 em versão resumida. (Ilustração de Luciano Barbosa, capa do livro #Protestos, organizado por Antonio David Cattani (TOMO EDITORIAL)



Teríamos novidade na história da humanidade se os jovens encontrassem velhos preparados para entendê-los.

As primeiras pistas para se compreender o século XXI se apresentaram antes de sua chegada. Polícias de diferentes lugares tentavam em vão desmantelar uma “organização” que, de forma incompreensível para a racionalidade dos anos 90, agia sem que existisse. Na Frente de Libertação Animal (ALF – de Animal Liberation Front)  atuava quem quer que libertasse animais de cativeiros,  desde que seguindo determinados princípios (ser vegano, tomar precauções para não causar danos a seres vivos, entre outros). Assim, qualquer pessoa pode fazer parte da Frente por algumas horas e depois retornar à sua vida normal de estudante, funcionário público, professor, artesão, médico, operador de copiadora.  Com isso, a polícia não conseguia prender e, por mais que investigasse, não chegaria a líderes, porque se tratava de uma organização desorganizada, horizontal, sem membros e, portanto, sem líderes, sem necessidade de líderes e contra líderes por princípio. ALF, assim como outras iniciativas, não é senão um conjunto de princípios norteando ações focadas e esparsas em todo o mundo, não necessariamente por ativistas.

Essa é uma possível chave para compreensão dos movimentos atuais, que surgem de forma espontânea, cumprem objetivos pontuais, podendo se desfazer ou se manter indefinidamente com o caráter pulverizado, anônimo. A angústia provocada nos mais velhos pela falta de interlocução com um líder ou representante é compreensível, porque ainda se pensa com as ferramentas que serviam para analisar os movimentos sociais do século XX, deflagrados a partir da centralidade de um comitê organizador ou de uma liderança personificada. Era também a época pré-internet. Não só a polícia se confunde. Mesmo os analistas sociais têm imensas dificuldades de lidar com o ator social anônimo, autodeterminado, que tem como guia seu pensamento autônomo e livre, que ora aparece ligado a uma causa, ora a outra, dificilmente se vinculando a partido político.

Assim também o pensamento conservador, até mesmo de pessoas de esquerda, entende que o local de se manifestar é na urna, e não na rua. Porém, como há muito se percebe, a urna não pode tanto assim, pois mudanças estruturais, por estratégias eleitoreiras ou sob o argumento da governabilidade, não decorrem espontaneamente da política partidária.
Daí o esvaziamento do interesse por eleições em determinadas camadas juvenis, justamente entre os jovens mais vinculados ao seu tempo e às novas causas. Por terem deslocado o interesse das urnas para as ruas e para ações práticas, eles são acusados de antidemocráticos: a velha lógica binária ressoou nas mentes dos analistas, pois, se não querem mudar no voto, devem querer a volta da ditadura.

Nesse contexto, mesmo os governos ditos populares foram capazes de adquirir blindados, a um custo superior a um milhão e meio de reais cada, para jogar água, marcar manifestantes e eliminar protestos de rua.

Estamos no início do século. Ele talvez seja marcado pelo fato de que mais pressão nos eleitos e menos preocupação com quem eleger é uma estratégia em tempos em que os partidos fazem questão de se mostrar confusos e pouco comprometidos ideologicamente.








A SAÚDE DEVE ESTAR ONDE O POVO ESTÁ E NÃO ONDE OS MÉDICOS QUEREM ESTAR

Hospital de Clínicas: nem Grêmio nem Inter. 


Costuma-se dizer que no RS tudo se “grenaliza” (por que não “intergrena”, relevante questão). Vai aí uma análise sobre o que é falso dilema. Desconhecem-se as pessoas que não gostam de futebol bem como as que gostam mas não do futebol profissional e, por fim, as pessoas que gostam de tudo, inclusive sem ter preferência por um ou outro time . Falso dilema: ou se é inter ou se é grêmio. Falso dilema: vidas humanas ou árvores.

Na sua fase inicial de desenvolvimento, as crianças raciocinam numa lógica binária. Para elas, ou se pode ou não se pode, é bom ou é ruim. As crianças estão se desenvolvendo e é natural que passem por essa fase, digamos, inicial de raciocinar. Elas precisam classificações, elas precisam que uma coisa exclua a outra. O pensamento mais sofisticado, mais complexo, vai se iniciar com o tempo.

Mas não para todos. Aqueles que pensam em termos de vidas humanas versus vidas de árvores raciocinam como uma criança de dois anos de idade. Assim como não se explica a teoria da relatividade a uma criança de dois anos, também não vale a pena discutir com quem estaciona ali naquele falso dilema. Para quem está tentando se inteirar do tema e tem idade mental superior à da infância, cabe comentar alguns pontos envolvidos na polêmica da hora de Porto Alegre. 


Na base da discussão, está um projeto de serviços de saúde. Como vimos recentemente, os médicos brasileiros (não todos obviamente) têm resistência em atuar em lugares (cidade ou bairros nas cidades) não centrais. Eles não deixam de ter razão, nossas periferias são mal cuidadas pelo poder público e ficam à margem de todos os recursos, como urbanização, segurança, etc. As entidades médicas reforçam a ideia de concentração de hospitais nas regiões centrais. O certo era termos políticas democráticas que incluíssem todos os bairros.

Erro número 1. Concentrar recursos em ampliação do Clínicas. Este hospital fica numa das regiões mais densas da cidade. Praticamente todas as ruas que o cercam sofrem com engarrafamentos (numa cidade que investe no modelo carrocêntrico, esse meio de transporte individual, social e ambientalmente caro segue privilegiado). A chegada de pacientes a este local não se dá de forma fácil - antes mesmo de o hospital ser ampliado. Observe-se que a ampliação dá conta de mais estacionamentos para automóveis individuais, o que tem por consequência óbvia mais ocupação das ruas por esse modal. 


Quem tem se mostrado tão a favor da vida humana, favor incluir no conceito de vida humana a população da periferia que muitas vezes morre antes de chegar aos bons hospitais. 

Quem tem se mostrado tão a favor da vida humana, favor incluir a saúde preventiva. Observe que essa política de saúde promove a doença para depois falar em tratamento. A vida em cidades poluídas é causa importante de adoecimento. (Bem, a indústria farmacêutica agradece a esse tipo de política que tantos estão apoiando). 

Erro número 2. Projeto que não levou em conta a retirada de 240 ou 250 árvores. Soluções arquitetônicas criativas parece que não constam desse projeto. Precisamos ouvir mais pareceres técnicos a respeito de alternativas para essa ampliação (o que não invalida o argumento principal de que a saúde deve estar onde o povo está e não onde os médicos querem estar)

Dois erros já estão bons para princípio de conversa.


Falta mencionar o campo de futebol existente na mesma quadra que pertence à associação de funcionários, que está sendo poupado, porque deve ser muito mais importante um bate-bola eventual do que um bosque que só interessa à saúde do planeta e da humanidade. 

VEGANOS NÃO SÃO SUPERIORES, APENAS NÃO SÃO BÁRBAROS




Certamente existe o patamar zero da moralidade, isto é, o estágio mais básico de todos, mas já no qual o sujeito se move baseado em noções introjetadas e pacificadas de certo e errado. Tanto assim  é que ele nem mesmo se dá conta disso. Ele não precisa teorizar sobre as coisas automáticas. Por exemplo: ninguém se acha muito ético ou alardeia aos quatro ventos o fato de que não tenta esmagar o pescoço de criancinhas recém-nascidas, que não chuta as canelas de velhinhas que fazem sua caminhada matinal, que não coloca açúcar no saleiro de um diabético. Enfim, existem ações tão básicas que não faz qualquer sentido a pessoa delas se orgulhar ou, por meio delas, se sentir superior. Entretanto, quando esse sujeito depara com pessoas que esmagam criancinhas, chutam velhinhas, agravam os males dos doentes, ele naturalmente fica indignado com tais ações e sua tendência é dizer que tais ações são erradas no intuito de que elas parem de acontecer. 

Percebam que ele não se dirige às pessoas que praticam tais atos dizendo que elas são absurdas, pré-civilizadas e que deveriam queimar no inferno (se eventualmente o fazem, talvez se deva ao calor do momento). Ele reage para que aquelas ações tenham fim, e a criancinha, a velhinha e o doente possam voltar à sua vida normal, a qual têm legítimo direito, apesar de, por sua fraqueza e debilidade, não conseguirem lutar por tal direito nas mesmas condições.

O veganismo faz parte desse estágio zero da moralidade, junto a tantas outras formas de ser e de agir. Ele não faz do vegano um sujeito especial, nem superior, iluminado ou exemplo de altruísmo – nem ele se vê assim. Ele sabe que faz apenas o básico: ele não usa desnecessariamente outros seres apenas porque eles são mais fracos. (Os veganos não estão livres de serem incoerentes e serem, por exemplo, racistas, homofóbicos ou toscos em qualquer outra dimensão da vida. Por sorte e por razões óbvias, tais pessoas são minoritárias, eu arriscaria a dizer até inexpressivas numericamente)

Quando alguém se ofende com a presença de um vegano ou com seu discurso está apenas revelando o natural reconhecimento de que não atingiu (ainda, espera-se) o estágio zero da moralidade.  Ao menos, nesse aspecto de sua vida, ele é pré-ético. Talvez – e muito provavelmente – em outros aspectos da vida ele seja bastante civilizado. Ele é até “normal”, o que, sabemos, numa sociedade como a nossa não significa grande coisa.

Na nossa casa, praticamos uma série de ações, todas elas inspiradas em exemplos de outras pessoas que nos ensinaram a fazer coisas e pensar de certa maneira, cuja justificação foi por nós pensada e ponderada. Não lembro de acharmos ofensivas novas ideias sobre como encarar a vida e o Outro, mesmo quando elas implicaram consideráveis mudanças.  Lembro de passarmos a pensar nelas e em como implementá-las. Quando não conseguimos, ficamos com a sensação de fracasso, mas não passamos a buscar as possíveis contradições de quem nos nos enunciou pressupostos éticos de como ser e agir, tampouco nos ofendemos e não transformamos nosso sentimento de fracasso em ataque a quem nos fez reconhecê-lo. E, muito menos, repetimos argumentos gastos, frágeis, grosseiros, numa patética tentativa de racionalização. Ela, a tentativa de racionalizar, só nos exporia mais ainda ao fracasso e correríamos o risco de acabarmos convencendo apenas a nós mesmos das débeis “verdades”, como apoio à contagem de carneirinhos para poder dormir bem.

Para resumir: veganos não são superiores;  em geral não se sentem superiores. Como, porém, não lutam por si mesmos, não adotam a causa animal para favorecer seus interesses, talvez isso soe aos olhos de alguns como um ofensivo altruísmo: quem lhes dá o direito de lutar por seres que, esses sim, consideramos inferiores?  Somos bastante acostumados a que parcelas de humanos lutem por causas que lhes digam respeito ou sejam, de algum modo, muito próximas. Somos muito pouco acostumados quando a estrutura da luta é outra.


Para resumir mais ainda: não se ofendam quando veganos lhes falam sobre os direitos animais, eles não estão pedindo seu voto, seu dinheiro, não querem qualquer benefício pessoal, não querem que vocês percam direitos, nem disputam sua fé, a não ser que esta fé se refira à confiança na justiça. Eles só querem que seres muito fracos possam ser defendidos (cobrem dos veganos quando eventualmente algum deles não é defensor de direitos humanos em paralelo com os direitos animais). Nada pode ser mais básico em ética do que isso.  

PAIS E TURISTAS

Artigo publicado em  Zero Hora de 16 de janeiro de 2014.



“Detesto férias, porque não se sabe o que fazer com as crianças”. Não foi a primeira vez que escutei essa frase, dita por pessoas que aparentemente renunciaram a ser aquilo que um dia escolheram ser:  pais. Enquanto os filhos anseiam pelo período de descanso escolar, os pais se veem perdidos porque não sabem ser companhia para os filhos ou não sabem onde deixá-los, e as crianças ficam sem endereço, estranhas indesejadas na própria casa.

Nos anos 80, quando estava no nível médio, uma colega um dia reconheceu: “só passei dois anos da minha vida sem ser em escola”. Na época, foi uma surpresa que nos assustou. Hoje esse número se reduziu a dois ou três meses e já não causa espanto.

Depois de nascidas, as crianças seguiram um caminho que, nos últimos tempos, foi-se naturalizando. Em meio ao período da amamentação, lá estavam elas sendo conduzidas para creches, das quais com o passar dos anos pularam para escolinhas até desembarcarem em escolas, estas instituições que, para desespero dos pais, inventaram dois meses ou mais de recesso. 

Creche alguma é boa, a menos que comparada com outra creche, mas jamais deveria ser considerada melhor do que a casa. Há crianças órfãs, há crianças abandonadas, há famílias sem qualquer condição de acompanhar e cuidar dos filhos na própria casa. Mas há famílias que teriam todas as condições para isso, mas aceitaram o marketing da creche, das escolinhas e da discutível tese de que a socialização deve começar desde cedo, unida espertamente à outra tese segundo a qual a qualidade da convivência compensa a quantidade. O que é preciso saber é que isso terá consequências. As crianças não se tornarão piores, muitas não adoecerão nem se mostrarão abatidas e deprimidas.

No outro extremo da vida, os idosos viverão o mesmo problema: serem levados a viver com estranhos, num endereço que não é o seu, sob cuidado de especialistas. Mais uma vez, há casos em que isso se faz realmente necessário, mas não é, por certo, o caso de todos os idosos asilados.

Cabe uma comparação com os sistemas de defesa de que todos desfrutamos. Se nos alimentamos mal, com exageros, com toxinas, não necessariamente adoeceremos, mas obrigatoriamente faremos nosso sistema imunológico trabalhar mais e de forma mais árdua, com preços que um dia talvez nos sejam cobrados.  O mesmo se dá com o psiquismo.

A necessidade de ficar na própria casa é legítima demais para ser compreendida como birra. Não se defende que as crianças não sejam contrariadas. Ao contrário, elas devem conhecer o sentimento de frustração para aprender a lidar com a vida real. Alguns desejos das crianças, porém, precisam ser escutados porque eles brotam de necessidades estruturais. Ser acordada no frio do inverno para ser levada para fora de casa, ter uma existência de superexposição, em que não decide o que fazer no minuto seguinte, submetida a programações diárias não criadas por ela nem em combinação com ela não é a melhor maneira de se iniciar no mundo com saúde mental e alegria. Quando muito, é um recurso que oferecem as instituições para resolver um problema das famílias que não deveria ser um problema da criança. Nesse contexto, são bem-vindas as ternas advertências presentes no livro “A Criança Terceirizada” (Papirus) do médico pediatra José Martins Filho (ex-reitor e professor de pediatria da UNICAMP) quando diz que não se pode priorizar o trabalho em detrimento das crianças.

No lugar de terceirizar os filhos, os pais poderiam experimentar ouvir as crianças, naturalmente não fazendo a escuta literal, mas sabendo, de um lado, interpretar suas ânsias por consumo, seus desejos de tecnologia, enfim, de gratificações a curto prazo e, de outro, observando os sinais físicos, como adoecimentos, sobrepesos, alergias. São incontáveis as formas pelas quais as crianças tentam mostrar quando não estão bem, mesmo que incapazes de verbalizar. É preciso que alguém se disponha a prestar atenção nelas.

Quando os pais não sabem o que fazer com as crianças já que, como turistas retornam à casa, identificamos um grave sintoma de que essa geração perdeu até mesmo as formas intuitivas de criar os filhos. 

DESAMPARINHO

Pode haver palavra mais linda que esta para significar o momento em que o dia cede lugar à noite?
Comprada de Eduardo Agualusa no  Milagrário Pessoal.


CIDADES PARA PESSOAS

Artigo| Cidades para pessoas



É característica do discurso vazio a apropriação de conceitos que causem impacto positivo, mesmo que o restante do discurso e principalmente a prática não guardem relação com as atrativas locuções. A noção de cidade para as pessoas tem se disseminado como posição política e visão de mundo em várias cidades, ainda que nossos políticos, que recentemente passaram a utilizá-la, incorram em contradição ao aliar a ideia de cidade para pessoas com noções incompatíveis com o conceito. Como exemplo, temos as propostas de mobilidade urbana, que em nada se aproximam do conceito original, utilizado e praticado por Jan Gehl em cidades como Copenhagen, Melbourne, Estocolmo, Nova York.


O conceito de pessoa aqui se opõe a máquina, a capital, a lucro, a desenvolvimento e a progresso. Não há pessoa no centro de uma lógica do capital e do progresso. Há pessoa na lógica da educação, do encontro, da solidariedade e do compartilhamento. Nenhum candidato fala em decrescimento econômico, por exemplo. E são conceitos associados pessoa e decrescimento. Não se faz política para as pessoas juntamente com desenvolvimento econômico, porque vão a direções opostas.

Uma cidade para pessoas promoveria estreitamento de avenidas, não alargamento. Uma cidade para pessoas privilegiaria aqueles que se deslocam a propulsão humana, como o pedestre e o portador de necessidades especiais, depois o ciclista e só depois os veículos motorizados, privilegiando o transporte público, confortável e pontual. As ciclovias e ciclofaixas não são segregadas das ruas e avenidas, mas subtraem uma pista antes destinada a veículos motorizados. Uma cidade para pessoas teria tempo de semáforo para o pedestre atendendo a sua necessidade e não à do fluxo do trânsito. Aqueles que vêm usando o conceito deveriam ler o livro do famoso arquiteto Jan Gehl Cities for people (Island Press, 2010). Na publicação ainda não traduzida ou publicada em língua portuguesa, Gehl sustenta, entre outras teses, que uma cidade para pessoas não tem edifícios altos, pois o contato com a vida da cidade só se pode obter até o quinto andar, e que a questão da densidade se resolve com projetos arquitetônicos orientados por uma ideia humanista. O conceito não se resume a retirar os carros das ruas e diminuir a altura das edificações.


Uma cidade para pessoas teria políticas de transformar terrenos baldios em praças públicas, iluminadas e com equipamento para crianças e adultos. Uma cidade para pessoas alargaria as calçadas e levaria segurança às ruas para que as pessoas não precisassem se gradear, roubando espaços de calçadas, e pudessem colocar suas cadeiras na rua e conviver com os vizinhos, substituindo o lazer baseado em consumo pelo lazer baseado em trocas sociais. Uma cidade para pessoas, ao proibir edifícios altos, investiria na convivência, base da realização humana mais plena.  Uma cidade para pessoas investiria na prevenção à saúde e não apenas no tratamento. Uma cidade para pessoas incentivaria os artistas de rua, investiria na sua formação e nas suas condições de trabalho. Uma cidade para pessoas acolheria suas crianças e adolescentes e criaria condições para que toda criança fosse aceita com suas características e história de vida, e, portanto, os abrigos municipais não se localizariam apenas nas periferias. Uma cidade para pessoas coibiria as descargas abertas dos carros poluidores, multá-los-ia e os apreenderia. Uma cidade para pessoas incentivaria o plantio de árvores e flores, não os coibiria. Uma cidade para pessoas não asfaltaria ruas em vilas populares sem lhes garantir espaço para as calçadas e para as praças, onde as crianças pudessem brincar e jogar. Uma cidade para pessoas teria aulas de trânsito na escola em que as crianças aprenderiam a se deslocar de bicicleta ou a pé, conhecendo seu bairro e os demais. Uma cidade para pessoas institui as zonas 30 (regiões, em geral bairros em que a velocidade máxima é 30 Km/h) e veda o trânsito de automotores em ruas em todos os bairros nos finais de semana.


Uma cidade para pessoas enfrenta desafios, cria inimigos nas esferas do poder econômico, inverte a lógica da necrópole, instaura a humanidade e recompõe a vida em espaço público aberto. Uma cidade para pessoas elimina outdoors e outras formas de enfeiamento e estímulo ao consumo. Uma cidade para pessoas incentiva a diminuição da produção de lixo, orienta sobre a separação e sobre a criação de compostagem em escolas, casas e apartamentos, institui hortas comunitárias em todos os bairros.


As pessoas não precisam ser cuidadas (como na campanha de uma candidata a prefeita de Porto Alegre), elas têm que se sentir incluídas no cuidar. Uma cidade para pessoas facilita a vida do cidadão e retira o poder do burocrata. Uma cidade para pessoas distribui o poder e garante que as pessoas tenham nas ruas a extensão das suas casas e não um parêntese entre espaços vitais.
Uma vez conhecido o compromisso com a cidade para pessoas, algum candidato ainda se habilita?

MALDITAS PALAVRAS



Era um evento sobre leitura com pessoas boas que querem ler mais os livros, embora às vezes esqueçam de ler o mundo. Mas os livros estão no mundo e o mundo nos livros. Todos os mundos o mundo. Seria bom que lessem Coetzee, muito Coetzee, mas parece que não o leem.
Orgulham-se do museu da carne, no qual penetrei como se viajasse às cavernas onde o primitivo falava a partir de suas entranhas. Reassistindo ao filme Os Companheiros, pensei estar no tempo certo, não querendo viver a revolução industrial, nem da poltrona do cinema. Mas também não quero esse mundo que ainda aceita a escravidão animal.

RECÊNCIA


Palavra criada por Roberto Silva, a quem passo a palavra:

Pois, recência é a qualidade daquilo
que foi feito há pouco tempo,
aquele frescor, ou aquele calor.

Feito pãozinho quente comprado
às seis da manhã na padaria, pura recência.

(Roberto Silva é um gênio brasileiro, cujo talento será amplamente reconhecido algumas décadas após sua morte. Gaúcho radicado na Paraíba, onde fotografa as gentes locais e faz crônicas universais)

A TRISTEZA DAS PALAVRAS


Tristeza de Escrever

Cada palavra é uma borboleta morta espetada na página:
Por isso a palavra escrita é sempre triste...
Mario Quintana

Quando ia ao Hospital Colônia de Itapuã, com Achutti para fazer a tese ou depois para o filme sobre o hospital e a hanseníase, visitava dona Lori no seu quartinho tão lindo. Ontem, perguntei a Liliana Sulzbach, que está fazendo o seu filme sobre o HCI, e soube que morreu. Daí o texto abaixo encontrou seu fim antes do que pretendia:


Quando nada mais sobra, sobra a memória. Quando a memória é dolorosa, resta a imaginação. Se não a temos, há quem tenha por nós. São os escritores de boa literatura. Nos recônditos do Rio Grande do Sul, num lugar chamado Hospital Colônia de Itapuã, deparei com a tristeza vestida de azul. Uma senhora cega, sentada na ponta da estreita cama, mãos curvadas, voz titubeante e sotaque alemão. As frases vinham na ponta de um punhal, mas o quartinho azul-mar tentava uma versão amena à sua dor. O rádio, um cão beagle de pelúcia, crucifixo e fotos na parede, bibelôs e fronha, colcha, paninho de crochê da mesma cor pareciam contrariar o opaco do olhar, que há muito renunciara à sua função. Quarto de menina, menina na foto da parede, a vida tinha parado por ali.

Ela tinha uma ânsia de falar, mas seu conteúdo estava gasto como a retina e repetido no rancor. Desde então tentei em vão um voluntário para lhe ler novas histórias. Alguém disposto a andar quase duas horas de Porto Alegre até o hospital, em ônibus de horários escassos e falhos, levando consigo contos russos, contos nórdicos, contos tropicais, poemas parnasianos, poemas românticos, épicos, sagas e narrativas de vitórias. Não encontrei essa alma leitora e hoje, ao buscar notícias da senhora hanseniana, soube que morreu. Sem ter podido viver outras histórias, mesmo que alheias.

Ler é uma forma de mergulhar na imaginação do outro quando a nossa falha. E a nossa falha por razões que ainda cabem compreender. Ao mergulhar na imaginação alheia, alimentamos a nossa, produzimos a nossa. Podemos ler também para nos tornarmos mais críticos, mais sagazes, mais profundos. Mas escrevo hoje sobre o inverso: se nossa profundidade já foi longe demais na condição humana, lemos para obter a solidariedade do Outro, e para olhar para nós de diferente ponto de vista, até mesmo, e principalmente, quando não temos isso: a vista.

PALAVRAS BONITAS

"... que compreendiam que as palavras tinham que ser usadas em seu proveito - e compreendiam que as palavras simbolizavam..." Dóris Lessing, p. 96


Palavra bonita, segundo meu avô, é scania vabis.
Palavra bonita não significa conteúdo bonito, ou o que seriam danação, lacaio, masmorra, cárcere, metrópole...

Quando não há palavras

Os flanais

fanal
s. m.
1. Lanterna ou fogo que se emprega de noite nas costas marítimas ou à entrada dos portos.
2. Lanterna grande a bordo dos navios.
3. Farol; luzeiro; facho.
4. Fig. Guia; norte; estrela.


Está no poema de Oscar Portela:

E os altos pinheiros como altos amores
O mais longínquo bosque de abedul
Aonde se ocultam os mais intensos astros
E as raízes mais profundas enterradas
Nos fanais mais secretos e doces.
De que falas pois senão de nossa
Finitude, do amor e a morte ?



E também na tradução do sempre genial Daniel Pennac, que é para qualquer leitor um legítimo fanal:

Os mais curiosos entre eles guiarão suas leituras pelos fanais de nossas explicações mais luminosas.


Mas sobretudo faltam-nos fanais nos tempos que correm/voam/flanam...

Quando não são necessárias palavras

Tonitruante

Tonitruante
do Lat. tonitruante
adj. 2 gén.,
que troveja;
atroador.



Foi num dia tonitruante do inverno passado que Ludmila (já esperando o filho) e João quase almoçaram juntos. Mas o último amarelou e correu para dentro de casa.

Lucarna


Lucarna
do Fr. lucarnes.
s.f.,
abertura feita no telhado para dar luz ao sótão.

"E a pequena lucarna televisiva através da qual olhamos pateticamente para o exterior só nos remete a nós mesmos." (Daniel Pennac, A pequena vendedora de prosa, na página 45).


Até os macaquinhos do sótão precisam de lucarnas, por que os estudantes não precisariam? Mas eles pensam não precisar, e se conforma uma grande maioria em ser o menos possível. Menos ler, menos pensar, menos ser... por quê?
Enquanto isso, uma minoria abre todas as janelas e postigos e se deixa ser mais. E o mundo será deles, porque não se contentarão com as lucarnas.

Acerbo



acerbo
do Lat. acerbu
adj.,
azedo;áspero;amargo.

fig., cruel;severo;rigoroso;pungente; doloroso.


Primeiro, ela se rasgou correndo no pátio. O sangue a levou ao veterinário. Ele se desesperou de ficar sem ela. Só, vivendo um momento acerbo, tentou cruzar a porta de grade. E entalou. Saí do transe ao sentir na nuca o bafo da cerveja dos vizinhos do bar. A solidariedade dessa rua se deve a poucos. Poucos e bons. E foi assim que Agostinho foi salvo. Mas Caçula está amargando o colar elizabetano que lhe confere charme e uma imobilidade acerba.

Diatribe

diatribe

do Lat. diatriba < Gr. diatribé, passatempo, conversação
s.f.,
crítica severa e virulenta;escrito violento e, por vezes, injurioso;discussão acerba;
ant.,
dissertação crítica.


Com esse(s) espírito(s), fomos a São Francisco de Paula conferir a Miragem, a livraria com que todos sonhamos sem saber que existia. E lá está a Miragem, grande e imponente. Ao mesmo tempo, acolhedora.

Epifania

April in Paris. Quase o sentido religioso da Epifania.


Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

Epifania é uma súbita sensação de realização ou compreensão da essência ou do significado de algo. O termo é usado nos sentidos filosófico e literal para indicar que alguém "encontrou a última peça do quebra-cabeças e agora consegue ver a imagem completa" do problema. O termo é aplicado quando um pensamento inspirado e iluminante acontece, que parece ser divino em natureza (este é o uso em língua inglesa, principalmente, como na expressão I just had an epiphany, o que indica que ocorreu um pensamento, naquele instante, que foi considerado único e inspirador, de uma natureza quase sobrenatural).








Anagogia




Anagogia. do Gr. aná, para cima + agogé, ação de conduzir
s. f., elevação;arrebatamento da alma;arroubamento.


Ela achou um ponto para mirar, franziu um pouco o cenho e esperou o sinal. A foto foi feita. Esperou paciente dia após dia até que pudesse vê-la. Mais, nunca saberemos. Nem mesmo se foi buscá-la. A fotografia fez com que existisse, revelada na sua anagogia cética. Não sei bem porquê, mas é no que penso quando a vejo assim, tão forte sem saber o quão desamparada está.

Os anos 30 e a melancolia









do Lat. melancholia mélas, negro + ckolé, bílis, fel.

Seus olhares olhando o nada ou o futuro, o que parecia dar no mesmo. Seria o entre-guerras? O fato de viverem numa pequena cidade do interior do estado mais ao sul? Ou seria nada relacionado a tempo e espaço, mas às vidas de cada um?

Eles não estão distraídos. Na sua frente, meu vô ajeitou seus equipamentos de fotografia, deu-lhes ordens de como se postarem, irritou-se com suas demoras e incertezas e lhes deixou claro de muitos modos que fotografias não eram então coisas banais. O peso da importância das fotos fez-lhes o fel negro dominar as pupilas.

Osga




Osga: do Ár. usga
s. f., Zool., réptil sáurio;
pop., grande aversão;ódio;asco.



A aluna olhou para a minha mesa e perguntou: Professoraaa! Está praticando levitação? Por um segundo, o corpo ficou tremendamente leve e foi como se pairasse um ou dois centímetros acima da borracha preta, ainda que por sorte ninguém tivesse notado, nem mesmo a Carol. No lugar de afirmar: sim, eu levito - há anos que levito uma ou duas vezes por semana (o que pouco surpreenderia meus alunos que parecem dispostos a aceitar qualquer esquisitice que parta de um professor da área de humanas), respondi: não, minha querida: Manual Prático de Levitação é o título de um dos contos e dá nome a esse livro do escritor angolano José Eduardo Agualusa.

Levitei porque me transportei de volta às férias. Não fomos à Paraíba. Mas ao Sri Lanka, Angola, Inglaterra, França e Estados Unidos. Assim, levitando, isto é, lendo. Bandeiras Pálidas, O Vendedor de Passados e Estação das Chuvas, Como ser Legal, Trópico de Câncer e Fup foram as minhas passagens, todas de primeira classe, tendo podido escolher viajar na rede, com refeições veganas e sem precisar apertar cintos. A comparação ler-viajar é gasta, sem deixar de ser boa.
Com Agualusa aprendi a gostar mais ainda das osgas (que eu só conhecia por lagartixas, no Nordeste, por calangos). Não que gostasse delas por conta do argumento batido e tão especista: porque “controlam” insetos. Até preferiria osgas vegetarianas. Mas Eulálio, a osga-narradora do Vendedor de Passados, em meio ao lirismo, faz refletir sobre temas acadêmicos, como memória e reconstituição histórica, além dos psicanalíticos. Só que uma página do romance = dez teorias em setecentas páginas, com a diferença de que muito melhor do que cada uma destas. Além disso, durante uma semana pude assumir a perspectiva da osga para acompanhar e amar uma casa e seus freqüentadores, na tristeza de vencer as páginas e saber que em breve perderia todas aquelas pessoas, sem controlar a ânsia de saber o que mais aconteceria a elas. E se um autor como Agualusa escrevesse uma obra sem fim, uma seqüência de livros, que pudéssemos ler ao longo de uma vida e que apenas terminasse no dia da nossa morte? Carol, eu levitaria para sempre !



Bandeiras Pálidas - Michael Ondaatje (Companhia das Letras)
O Vendedor de Passados - José Eduardo Agualusa (Griphus)
Estação das Chuvas - José Eduardo Agualusa (Griphus)
Como ser legal - Nick Hornby (Rocco)
Trópico de Câncer - Henry Miller (Ibrasa)
Fup - Jim Dodge (Nova Fronteira)

Mas a casa é cercada


A mulher do lado e do alto diz para a mulher de cima e do alto que deixará seu apartamento e irá para um lugar sem cachorros. Os cachorros, no caso, devem ser os que moram conosco, Caçula, Santo Agostinho e Dona Baixinha. Todos os humanos da redondeza gritam quando falam e quando brigam, mas os cães deveriam ser mudos. Descubro assim que deve ter sido ela quem chamou a Zoonoses e que nos alegrou um dia com a visita de um simpático fiscal que achou tudo muito bem nesta casa de gatos e cães.
A mulher de cima hoje contratou uma pessoa para podar a cerca viva para que ela fique longe de seu ar condicionado. Deixou bem claro que aprecia mais as cercas mortas. Vivemos cercados de pessoas que preferem tudo morto ou tudo humano. Sem plantas e sem animais.

Enquanto eles ladram, a cerca viva sobe.

A casa e o bovarismo



Antes do pior calor de março, bem antes do inverno gelado e molhado, noites de estar em casa. Viver a casa é estar com os animais, com as músicas, as comidas da Leela, esperando o João chegar com o leite de soja para assistirmos a uma comédia francesa tirada hoje na pequena locadora do bairro.
Assim não importa tanto que as férias tenham terminado. Importa é poder continuar lendo romances e planejando dias melhores, como aqueles em que voltaremos à Aldeia Perdida (perdida no meio da Baía da Traição), reencontrar Valdomiro, que cedeu seu braço para o frontispício desse blog, dona Flor e dona Amélia aí em cima na foto. Sem contar Roberto, Val e Romero.
Sonhando com eles e com os 365 dias de sol da Paraíba dá para suportar esse sul. O sentimento produzido quando a imaginação se solta, quando se percebe o coração pulsando e se viaja sem rédeas, conhecido como bovarismo (ver Daniel Pennac e os direitos do leitor), só pode ocorrer assim, no tempo do não trabalho.